A trancrição de um registro sobre a banda mais injustiçada da história da música brasileira:
Almir de Oliveira fundou o Ave Sangria, grupo pernambucano da década de 70 que foi importante pela sua irreverência e musicalidade à frente de seu tempo. Inicialmente, ele foi formado por Almir, Marco Polo, Ivinho, Agricinho e Rafles. Naquela época de contracultura, o Drugstore Beco do Barato, bar localizado no centro do Recife, antigo TPN (Teatro Popular do Nordeste), era o cenário perfeito para uma juventude que se descobria e contestava o poder político e a moral vigente. Foram batizados de Udigrudi.
Mesmo depois do fim do Ave Sangria, e lá se vão 30 anos, Almir nunca deixou a música de lado. Agora, em seu novo projeto, ele tem a companhia de sua esposa Niedja nos vocais, do neto Caio César, percussionista, além de outros músicos. As composições seguem a linha do rock ‘n’ roll, vício que ele não abandona. Mas Almir também flerta com ritmos como bolero, chorinho e maracatu (mistura, aliás, presente já em sua antiga banda). A irreverência das letras e a ousadia da juventude permanecem. Não é à toa que seu novo trabalho, intitulado “Quem não conhece Lolita, não conhece o Recife”, conta a história de um travesti que escandalizava a cidade nas décadas de 50/60.
Com a ajuda da sua produtora Bianca Simpson, Almir vem se apresentando no Recife e sente-se mais livre para compor e fazer planos de um novo CD e até um DVD. O que eles precisam agora é de apoio das instituições públicas e privadas para concretizá-los. A entrevista que você começa a ler é um retrato fiel e sincero de um músico que resistiu ao tempo, mesmo que muitas vezes tenha sido impedido de dizer tudo o que sentia ou pensava.
"Na capa original, a ave não estava estática, ela voava. Tinha uma caveira de boi, uma coisa nordestina. Porque mesmo sendo rock, tínhamos uma musicalidade do Nordeste"
Como surgiu a vontade formar a banda?
Eu comecei a tocar com 16 anos em bailes e mais ou menos aos 18, comecei a compor. O grupo com o qual eu tocava nos bailes, Os Astecas, não queria fazer algo autoral. Então, um dia, falando com um dos músicos dos Astecas, Rafles, expus a ele a minha vontade de fazer um grupo que tocasse músicas próprias. Aí ele falou de um amigo que morava no bairro de Casa Amarela que também tinha essa vontade. Um dia, ele me levou na casa desse amigo, que era Marco Polo. No mesmo dia, eu conversei com Marco, que logo se interessou. Convidei-o para assistir ao ensaio dos Astecas. Ele foi e gostou. Na metade de 69, eu passei a tocar com Os Selvagens, que também era lá da Vila dos Comerciários (subúrbio do Recife). Foi quando eu conheci Ivinho e Agricinho.
Onde vocês ensaiavam?
O primeiro ensaio foi lá em casa e depois na de Ivinho. Quando a gente foi gravar o disco, ensaiamos na casa de Mário Teodósio (amigo do grupo), no Poço da Panela. A família dele foi passar uma veraneada lá em Pau Amarelo. Nesse tempo não era Porto de Galinhas não, era Pau Amarelo e Candeias (risos). Como a casa ficou vazia e na parte de trás tinha uma garagem, ensaiamos lá mesmo. Depois, o irmão de Paulo Rafael (outro amigo), que trabalhava na Compesa, arranjou para a gente tocar na Associação da Compesa. Era assim, na base da amizade. Os amigos nos emprestavam até instrumentos.
E como eram os shows?
A gente bancava tudo, mas às vezes dividíamos os custos com uns amigos que nos ajudavam na produção. Fazíamos de tudo. Pregávamos cartazes na rua, distribuíamos panfletos... Num show do Perfumes y Baratchos, eu acordei cedo, distribuí panfletos da cabeça do Pina até a pracinha de Boa Viagem, aproveitei e peguei um bronze (risos). De tarde, carreguei e montei os instrumentos, passei o som para a Polícia Federal e toquei à noite. Tínhamos por obrigação tocar todo o show para a Polícia Federal, para que não tivesse nada de errado nas letras. Eles ainda ficavam na hora do show para ver como ia ser.
Teve algum show interditado?
Não. Mas de vez em quando alguém era “convidado” a depor. Flaviola foi chamado para depor na Polícia Federal. Quando a gente ia liberar letra de música, por exemplo, às vezes tinha um bate-bocazinho. Tinha uma música minha chamada “Sundae” que foi proibida. Era uma coisa meio psicodélica e eles não entendiam o que significava. Nessa confusão toda eu dizia: “Rapaz, vocês que são os especialistas em análise de letras não estão entendendo, imagina o povo que está aí passando fome”. Aí ele disse pra mim: “Se repetir isso, fica”. Você não podia dizer que nada estava ruim, só que estava bom, só que a gente não dizia isso. A gente falava do silêncio costurado na boca do guarda.
Quem eram as pessoas que freqüentavam os shows?
Tinha gente do Morro da Conceição à Boa Viagem. Pessoas de pouca instrução ou de grande instrução. Muitos artistas freqüentavam os nossos shows como Paulo Bruscky, Lula Côrtes, Tiago Amorim, Ângela Botelho, Mário Teodósio, e todo o pessoal que gostava de arte e que não estava satisfeito com aquela história de repressão. A nossa primeira apresentação foi num festival em Fazenda Nova já como Tamarineira Village. As pessoas dizem até hoje que a gente não tinha o nome Tamarineira Village, mas já tínhamos.
Naquela época, como a mídia via o trabalho de vocês? Marco Polo já era jornalista? Isso facilitava?
Jornalistas da época, como Celso Marconi, Walter Coutinho, esse pessoal sempre abriu espaço pra gente nos jornais. Marco já era jornalista. Ele começou no Diário da Noite. Em 69, ele foi para o Rio de Janeiro. Quando voltou, o pessoal do jornal já o conhecia e isso facilitava. Duas coisas foram importantes naquela época para a nossa divulgação: a TV Jornal do Commercio e a Rozenblit. Eu toquei em muitos programas de auditório. O Nordeste inteiro via aqueles programas. E a Rozenblit era um estúdio e a fábrica de discos que distribuía para todo o Brasil. Quando a TV e a Rozenblit acabaram, perdemos dois aliados importantes.
Como surgiu o convite para gravar um disco pela Continental?
Tinha uma outra gravadora que procurou Marco pra a gente gravar um disco, não me lembro o nome... Mas nós achamos que ainda não estava em tempo. Éramos ainda Tamarineira Village. Aí o Trio Irakitan passou por aqui e nos conheceu, porque a gente estava sendo comentado no sul do país. Então, eles nos indicaram pra Continental, já que a gravadora estava atrás de um grupo de rock do Nordeste.
E por que a mudança do nome de Tamarineira Village para Ave Sangria?
Tinha pessoas que falavam apenas Village ou não falavam o nome direito. E quando a gente fez o contrato com a Continental, eles acharam que seria melhor trocar por um nome que fosse mais fácil. Eu não queria, mas foi decidido. O nome foi dado por Marco Polo.
Mas o nome era bom...
Eu prefiro Tamarineira Village. Quem deu esse nome foi Rafles, porque ele representa a nossa própria realidade. A maioria dos músicos saiu da Vila dos Comerciários, no bairro da Tamarineira. Tamarineira era o nome do hospício e do bairro e, portanto, tinha ligação com a loucura que a nossa música representava na época. Eu até hoje acho esse nome mais interessante, até porque também dava a idéia de uma comunidade musical, que era o que a gente queria fazer. Queríamos um grupo mais democrático do que foi o Ave Sangria. Porque o Ave Sangria terminou centrado em torno de Marco, apesar de ele ser o músico de mais prestígio. Agora, eu não acredito que isso tenha acontecido pelo fato dele ser jornalista. Outra coisa: as músicas das gravações não foram bem divididas, o grupo era para ter sido mais democrático e não foi.
Como foi a gravação?
Foi uma loucura (risos) porque deram pra gente uma semana para gravar e nunca tínhamos entrado num estúdio. Eu fiquei preocupado, porque pedi a um representante da Continental daqui, um maestro e tempo suficiente pra gente gravar um disco, pelo menos um mês. Era pouco, mas pelo menos a gente tava ensaiando. Mas quando a gente chegou ao Rio de Janeiro, não tinha maestro e foi só uma semana pra gravar. O estúdio só tinha bateria, não tinha instrumento nenhum, e tivemos que correr contra o tempo. Experiências que a gente queria fazer, como, por exemplo, colocar um caboclinho em “Geórgia, a Carniceira”, não foram possíveis. Não se podia errar, porque não dava tempo. Teve até uma música em que eu errei o baixo, mas ficou por isso mesmo. Eu ainda tentei conversar com o produtor para transformar as passagens de avião e hospedagem de hotel em hora de estúdio, mas não teve jeito. A gravadora, na verdade, não tinha muito interesse. Todos os artistas daquela época, no primeiro disco, não ganhavam muita atenção. E do meio mais underground quem estourou foi o Secos & Molhados.
Após esse disco, o que aconteceu com a banda?
Com um mês e meio de gravado, o disco estava em décimo lugar nas paradas da época por causa de “Seu Valdir”. Mas aí, houve a proibição do disco por conta dessa música. O princípio moral e dos bons costumes entendeu que a gente era um atentado. A música dizia: “Seu Valdir, o senhor magoou meu coração”, era um homem cantando para outro homem. Era uma apologia ao homossexualismo...
E Seu Valdir existiu mesmo?
Aquilo foi uma música que Marco fez para Marília Pêra cantar em uma peça, na época em que ele estava morando no Rio. Então, quando ele chegou por aqui, em 71, mostrou a música pra gente. Nós adoramos. Chico Buarque já tinha feito músicas semelhantes, mas como se ele fosse uma mulher. Mas, um homem falando pra outro homem era a primeira vez. Foi um escândalo... Tiraram os discos das lojas, das rádios... Um tempo depois, a Continental relançou o disco sem “Seu Valdir”. Mas aí não teve graça. Foram vendidos, em um mês e meio, de 15 a 20 mil discos. Para a época foi ótimo. Aliás, ainda hoje é ótimo. Hoje ele virou uma peça de colecionador.
Eu li que Charles Gavin, dos Titãs, queria relançar o disco do Ave Sangria dentro da Série ‘Dois Momentos’ da Continental. Como ficou isso?
Na época em que Tom Capone era vivo, conversei com ele no Abril Pro Rock. Eu levei um clipping excelente do Ave Sangria. Eu disse ao Capone que se relançassem o disco, cinco mil eram vendidos apenas por aqui. Ele me deu o telefone dele, passei um mês ligando pro Rio, nunca tive uma resposta. E o projeto do menino dos Titãs era só para quem tinha dois discos. Mas poderia ter lançado com outra banda, mas até hoje não rolou. A master agora pertence à Warner.
Em uma foto de divulgação do Ave Sangria, vocês aparecem junto a uma menina semi-nua deitada. Quem era ela? E, afinal, quem fez a capa do disco?
Até hoje a gente mantém um segredo (risos). Ela era uma menina da sociedade, hoje já é uma senhora. Talvez o marido dela não goste. Mas ela era menor de idade na época, por isso que ficou de costas. Ninguém de maior topou, aí ela disse que fazia. Mas o sentido daquela foto era chocar mesmo, porque as coisas mais simples naquela época se tornavam um estardalhaço. Era uma coisa de ser rebelde, subversivo. Laílson (cartunista e músico pernambucano) fez a capa do disco. Inclusive modificaram, não era exatamente assim. Não quiseram pagar Laílson direito e fizeram essa maquiagem. Na capa original, a ave não estava estática, ela voava. Tinha uma caveira de boi, uma coisa nordestina. Porque mesmo sendo rock, tínhamos uma musicalidade do Nordeste.
Conta uma história interessante dessa época...
Essa história é interessante e inédita. O pessoal estava tocando com Alceu Valença, entre janeiro e fevereiro de 75. Alceu estava montando um show em São Paulo e a Globo queria fazer um quadro do Fantástico com ele. Até que um dia a mãe de Ivinho ligou lá pra mim dizendo que o Ave Sangria tinha que ir pro Rio de Janeiro. Eu fui à casa dos meninos avisá-los que tinha coisa pra fazer no Rio. Passou o tempo, quatro ou cinco dias e outro recado da mãe de Ivinho: “Almir, leve o Ave Sangria pra lá”. Daí eu fui à Rede Globo daqui saber o que estava acontecendo e eles confirmaram com o Rio. Dei o nome completo de todos e viajamos por conta da Globo. Quando chegamos lá, não era pra ser a gente, apenas os meninos que acompanhavam Alceu. Mas a Globo ligou pra Continental e pediu que ela bancasse os nossos custos. A Continental aceitou, mas colocou a condição de também fazermos um Fantástico. Gravamos o especial, mas nunca foi ao ar, porque o grupo acabou.
Mas vocês tinham consciência de que estavam fazendo uma música de vanguarda?
Com certeza. A idéia da gente, primeiramente, era de fazer uma música que expressasse o que a gente era. Vínhamos de uma classe operária, dizíamos o que pensávamos, aquilo chocava. Éramos influenciados pelo rock ‘n’ roll, pelo movimento existencialista e hippie, por toda essa contracultura que estava surgindo no mundo. Então, resolvemos aderir a esse tipo de pensamento, porque era a nossa própria natureza. Mudamos até de hábitos. Porque era o seguinte: naquela época, quando a gente se encontrava com as meninas, não tinha essa história de beijo no rosto não, era aperto de mão. Isso de usar o cabelo grande não existia, das meninas andarem junto com os meninos, só se fosse com o irmão. Então, a contracultura daquela época modificou também a forma de viver das pessoas, o relacionamento ficou mais aberto, até as diferenças das classes sociais ficaram menos separadas. Ali na Vila tinha um pessoal burguês, mas a gente se relacionava bem. O clube Náutico, no entanto, só era freqüentado pela burguesia. Eu ia para o América, que era mais povão (risos).
E dentro desse contexto de contracultura, onde entravam as drogas?
A meu ver são coisas que tiram você do objetivo principal: a música. Hoje em dia eu não sinto nenhuma falta de bebida, de nada. Talvez eu tenha superado isso, mas em outras épocas eu até tenha precisado por conta das minhas carências financeiras, emocionais e profissionais. Só que eu acho que existem outros mecanismos pra você compensar essas faltas sem precisar agredir o corpo e a mente.
O livro do jornalista José Teles, Do Frevo ao Manguebeat, é fiel àquela época?
Não. Quando as pessoas falam de Ave Sangria só publicam o que Marco Polo ou Ivinho dizem. Tem coisas que aconteceram naquela fase do Ave Sangria que eles não contam. Teles me procurou, mas tem coisas que eu falei ou falo, que não sai. Quem começou essa banda fui eu e ninguém do Ave Sangria fala isso e nem está no livro de Teles. Quem tocou no Ave Sangria deveria dizer como realmente foi, mesmo que a mídia puxe para um lado. É a recompensa que todo músico quer, no mínimo. E outra coisa, não seríamos nada sem os amigos que nos apoiavam.
Você tem algum ressentimento por isso?
Nenhum pelo seguinte: você pode considerar que uma coisa é um castigo ou uma oportunidade. Eu não sei o que seria de mim se o Ave Sangria tivesse dado certo. Eu não sei o que seria de nós... Será que ia dar certo? A gente presume que seria melhor, não é verdade? Mas eu acho assim, tudo na vida a gente tem que utilizar como oportunidade. Até aquela história da proibição do “Seu Valdir”. Olha, até hoje o pessoal comenta. João Alberto (colunista e jornalista local) chega à televisão e diz que aquilo era um atentado aos bons costumes e que não gostava.
Aí vem a pergunta que não quer calar: Por que o Ave Sangria acabou?
Bem, eu acho que tem vários aspectos. Mas o principal é: um grupo sem a estrutura financeira, não consegue se sustentar. Eu pelo menos nunca tive um contrabaixo na minha vida... Israel não tinha bateria... A gente não tinha nada. Nós tínhamos uns violões, violas e guitarras. E aí, depois que o disco começou a tocar e foi proibido, aquilo foi um choque muito grande pra gente. Teríamos que começar da estaca zero. Continuamos tocando até o final de 75, que foi quando veio o Festival Aventura e a gente não se inscreveu. E o pessoal foi definitivamente tocar com Alceu, porque precisavam de grana. Mas quero deixar bem claro que Alceu não teve nada a ver com o fim do grupo, como se comentou na época. Os meninos é que não queriam mais o Ave Sangria. Se hoje eu fosse fazer o Ave Sangria, com os mesmos músicos, mas com estrutura, seria muito melhor. Com dois anos de Tamarineira tínhamos mais de cem músicas. E era assim, eu fazia uma música e mostrava a Marco e ele depois chegava com uma pra mim e assim por diante. Teve até uma matéria feita por Teles em que Laílson dizia que eu e Marco tínhamos rivalidade. Nunca teve isso. Pelo contrário, a gente se estimulava.
Existe alguma possibilidade de volta do Ave Sangria?
Existem algumas dificuldades. Marco não quer mais seguir a carreira musical. Se chamar Ivinho pra tocar, ele toca. Rafles também. Agricinho não dá mais. Paulo Rafael vive no Rio de Janeiro. Então, é por tudo isso que se torna complicado. Não é nada pessoal, mas cada um seguiu a sua vida. Eu continuei com o meu trabalho solo, porque não sei viver sem a música. Tocava por ali e acolá e isso já me alimentava. E digo mais, se eu tivesse tido a oportunidade de ser apenas músico, não teria sido engenheiro.
* Entrevista publicada originalmente na Revista Coquetel Molotov nº1