Ave Sangria


A primeira vez que ouvi falar da Ave Sangria foi em uma matéria de extinta (Deus sabe até quando) revista Bizz, sobre Psicodelia Brasileira. Ao lado dos clássicos discos do Ronnie Von, figurava uma banda com um título inusitadamente curioso e procedente do Nordeste, de Recife, exatamente.
Na minha adolescência tive acesso aos primeiros e melhores discos de artistas Nordestinos, como Fagner , Alceu Valença, Zé Ramalho e mesmo Elba Ramalho.
O que estes artistas se tornaram depois, por força da indústria, pela necessidade de um retorno financeiro ou simplesmente por descaso com sua proposta musical inicial é assunto para um outro Post, o importante é que aqueles trabalhos demonstravam que havia sim uma cena musical e artística muito forte e com características próprias naquela época na região.
Eram os anos 70, e após o advento do Tropicalismo, o que estava na moda era alardear a nossa Brasilidade. Com o país fechado pela ditadura , nossos olhos se voltavam para nós mesmos. Mas o Tropicalismo tinha um que de movimento estético sulista, impregnado por uma visão colonialista do Sul/ Sudeste sobre um Brasil hipotético, possível, porém improvável.
Era no Nordeste que idéia musical do movimento tropicalista se manifestava da forma mais concisa, sem o aceno da mídia ,preponderante na época.
Era neste mesmo Nordeste que uma segunda geração de artistas assimilava as influências do rock vindo de fora, ou pelo menos do que chegava por aqui, e acrescentava a ela elementos regionais, criando algo novo, espontâneo, como só se veria novamente nos anos 90 através do Mangue Beat.
Lá fora Bowie e o Glitter Rock predominavam, no Brasil, o impacto dos Secos & Molhados, se apropriando da estética Glitter, ainda demoraria a baixar.
Em Recife, uma banda inicialmente batizada de Tamarineira Village, em homenagem ao bairro onde moravam, aplicava essa mistura , de estética internacional e musicalidade regional acrescidas de Psicodelia, eram tachados de Rolling Stones do Nordeste.
Àquela época , o preconceito com região era ainda maior do que hoje. O Brasil se resumia na Rede Globo e a imagem estereotipada e idiotizada do Nordestino era , para a grande massa de espectadores, uma verdade inexequivel.
Talvez por isso, ou em protesto a essa realidade que ainda hoje é absurda, ao chegar no estúdio de gravação para registrar seu primeiro e infelizmente último trabalho, os integrantes da banda tenham se fantasiado de lampião, com peixeiras na cintura.
Mas a verdade é que , dentro do contexto da época, NÃO podia haver alguém no Nordeste produzindo Rock, isso era coisa de Paulista, no máximo, de carioca.
As gravações do album homônimo foram tumultuadas , e isso resultou em uma sonoridade mais acústica do que a banda pretendia,contribuindo para desgastar ainda mais o relacionamento entre os integrantes.
O Album foi lançado sobre protesto da banda, pois à revelia, a arte da capa fora alterada por um arremedo da arte inicial, uma estratégia da gravadora para não pagar os direitos autorais ao ilustrador Pernambucano Laílson de Holanda Cavalcanti.
Em 1975 a banda se reuniu para um concerto de despedida, deste concerto foi extraído o Audio do semi oficial (ou Quase Pirata) Perfumes & Baratchos.
É lá que se consegue, muito mais do que no disco homônimo, sentir a força da banda.
É lá também que se vislumbra o que poderia ter sido.
O Ave Sangria foi uma banda injustiçada, por preconceitos, eufemismos e incompreensão tanto da mídia quanto do público.
30 anos é muito tempo para que se faça justiça, os integrantes da banda são hoje respeitáveis senhores, que ainda trabalham de alguma forma com produção musical, a exceção do baterista, que cometeu suicídio nos anos 80
Mas nunca será tarde para se encantar com o que o Nordeste produziu de mais transgressor três décadas atrás, ainda que paire certa melancolia e uma triste certeza: Enquanto a criatividade for escrava da mídia ela estará sujeita a distorções como a que condenou a Ave Sangria ao limbo das curiosidades.

Abaixo transcrevo entrevista com Almir Oliveira, um dos fundadores da banda, publicada originalmente na revista Coquetel Molotov # 1

1 comentários:

  Anônimo

12:39 AM

Também sofri (no bom sentido) da psicodélica nordestina lisergica setentista... ainda sofro, quero dizer - curto muito, sem querer ser passadista, mas referencista e reverencista às coisa boas... E sem querer me tornar repetitivo, voltei aqui e reli esse texto: e adorei seu texto de novo, de velho, de atemporal... me identifico bastante a cada novo/velho instante com o que você escreveu. Um dia pensei: será que outras pessoas escutam tanto essa época como eu? Acabei conhecendo Mirabô (que me linka muito a essa época de um nordeste experimental, como você bem colocou aqui) de quem eu era/sou fã e agora é meu amigo, e convidei-o (convidamos, eu e o resto da trupe dOs Poetas Elétricos) para uma participação pra lá de especial em nosso segundo cd. Para nossa honra e felicidade ele aceitou e a poemúsica ficou maravilhosa. Em breve lançaremos nosso segundo disco voador, de nordestinos extraterrestres, como tantos, faz tanto tempo... Alexandre, o grande: saudações a sua nave e que ela sempre vá fellinianamente arranhando outros perdidos espaços...